19 jan 2021

O mundo da internet e o direito ao esquecimento.

postado em: Coluna da Zafalão

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Como bem sabemos, o Direito anda junto com o caminhar e desenvolvimento da sociedade. Está cada vez mais claro e têm se tornado indiscutível que a Internet é uma das maiores fontes de poder da humanidade. Esse universo fluido abarca uma infinidade de possibilidades, conteúdos e relações capazes de transformar a realidade.

Através dela podemos presenciar que a pessoa consegue ser, quase que instantaneamente, ao mesmo tempo, receptora e transmissora de informações. Ora, ao mesmo tempo que se tem contato com um compartilhamento, com um “print”, com uma informação, o indivíduo já o reposta, e esse processo se repete e alcança dezenas, milhares e bilhares de pessoas.

A internet funciona no tempo do piscar de olhos e do estralar de dedos. Nesta mesma periodicidade os dados, informações e fatos são difundidos, o que como quase em tudo na vida possui o lado bom e o lado ruim. Dito isto, prossigamos à análise dos efeitos jurídicos causados, por exemplo, pela chamada “cultura do cancelamento” na internet e, também, pelo desabono e descrédito virtual e real decorrente de certos fatos noticiados.

Ora, hodiernamente, “cancelar” alguém na internet se traduz em impor ao “cancelado” o total descrédito e desabono de parte ou até de toda a sua existência virtual e real, em razão de alguma opinião, ação, trabalho que tenha desagradado e/ou ido de encontro com o que aquele que “cancela” considera como o correto, o moral. ‘Como efeito de tal cancelamento, este não só deixa de seguir o cancelado nas redes sociais, mas, também, busca influenciar outras pessoas nesse sentido. Daí surgem os posts e hashtags que seguem o mesmo processo supradito da rápida disseminação.

Por óbvio, essa análise virtual de condutas tem seu viés altamente positivo na medida em que se presta a coibir e desestimular ações que envolvam discurso de ódio, preconceitos dentre outras condutas reprováveis que devem sim serem reprimidas e punidas conforme a lei.

É preciso, no entanto, evitar o “linchamento público”, que relembra com muita similaridade a época da vingança privada, da Lei de Talião. Nada novo sob o sol, mas apenas repaginado com a roupagem da tecnologia, da internet e dos computadores/dispositivos que podem acabar funcionando como camuflagem aos maus intencionados- que podem até mesmo ser responsabilizados por seus atos/excessos. É preciso estar atento.

Nessa esteira temos também a divulgação de fatos e dados que vão de encontro aos conhecidos direitos à privacidade e intimidade, previstos em nossa Constituição Federal (art. 5º, X). E é essa esfera que vamos explorar adiante.

No âmbito da internet e, por conseguinte, das notícias, é inegável o constante embate entre o direito à liberdade de expressão (art. 5º, IX, CF) – ligado também à liberdade de imprensa e ao direito ao acesso à informação (art. 5º, XIV, CF)- e o direito à privacidade e intimidade do indivíduo- que envolvem, também, os direitos da personalidade (arts. 11 a 21 do Código Civil). Além destes, se faz imprescindível considerar também o princípio constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, que é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, CF).

Vale destacar, por exemplo, a discussão a respeito do sopesamento entre o direito da imprensa de cobrir fato da vida de determinada pessoa e o direito que essa pessoa tem à privacidade, à intimidade, a não querer ser eternamente lembrada por determinado fato ou acontecimento.

Nesta seara é discutido o direito ao esquecimento, também conhecido como o “direito de ser deixado só” ou “direito de ser deixado em paz”, que protege o direito da pessoa de não ser eternamente lembrada e exposta por um fato que tenha ocorrido em sua existência, que lhe cause dor, sofrimento; que fira sua dignidade, intimidade e privacidade.

A Europa como eminente precursora dos direitos relativos à proteção de dados, explorou e amadureceu este direito ao esquecimento, que tem suas origens no campo das condenações criminais, sendo invocado para impedir, por exemplo, que certa condenação persiga o indivíduo para o resto de sua vida, o que dificultaria sobremaneira a sua ressocialização.

No Brasil, o direito ao esquecimento foi citado na 6ª jornada do direito civil, no enunciado 531, que versa: “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento.”

Em contexto similar ao retro exposto, cabe ressaltar o famoso Recurso Especial 1.334.097/RJ julgado pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ, no qual, em suma, apresentou-se o caso de um indivíduo que havia sido julgado por supostamente ter envolvimento com a “chacina da Candelária” e que fora inocentado, mas, anos depois foi citado novamente em uma reportagem sobre a questão, a qual inclusive revelou seu nome e imagem.

Neste caso, ponderou-se que a história poderia ter sido contada com a mesma fidedignidade aos fatos e acontecimentos, sem que fosse necessária a exposição da imagem e do nome do indivíduo em questão, motivo pelo qual manteve-se a indenização ao ofendido. É possível inferir que a imprensa pode até relembrar o fato, mas não o associar a pessoa(s) específica(s) durante vários anos.

Outro importante julgado foi o do Recurso Especial 1.335.153/RJ que tratou da exposição relativamente recente de um caso envolvendo crimes hediondos ocorrido em 1958, que foi exposto por uma emissora que divulgou, também, o nome da vítima. Desse modo, os familiares se sentiram lesionados pela exploração de uma tragédia familiar e reavivamento de dores e sofrimentos relacionados ao caso, sendo que, para tal, invocaram também o direito ao esquecimento.

Nesse caso, o STJ decidiu negar provimento ao recurso, expondo que o tempo transcorrido pode gerar uma diminuição da dor e sofrimento, bem como que a repercussão do crime; sua relevância social; sua historicidade torna, de certa maneira, certos elementos (como a vítima) indissociáveis do acontecimento.

Vale ressaltar que o direito ao esquecimento não se restringe ao âmbito penal/criminal, mas pode ser invocado/verificado em várias outras áreas como, inclusive, no âmbito das relações trabalhistas. Ora, sabemos que as redes sociais bem como os sites de buscas podem ser utilizados como meios para investigação social e de conduta prévia a uma entrevista de emprego, por exemplo; dentre outras

Diante do exposto, é válido o questionamento: até que ponto e medida deve ser explorado um fato ocorrido na vida de alguém? De um lado a imprensa, que noticia, precisa ter responsabilidade social com a utilidade da informação que difunde. De outro lado, a sociedade deve se preocupar com a necessidade de circular e/ou até mesmo consumir a exposição de certos fatos e histórias.

Por fim, a meu sentir, cabe aqui trazer a nobre lição que o aclamado jurista Rudolph Von Ihering nos deixou em seu livro “A luta pelo direito” (São Paulo: Martin Claret, 2000): “eu não preconizo por forma alguma a luta pelo direito em todas as contendas, mas somente naquelas em que o ataque ao direito implica conjuntamente um desprezo da pessoa.”.

Autora: Elisa Zafalão – Advogada, graduada pela Universidade Federal de Goiás – UFG e Pós-Graduanda em Direito Público pela Instituição Damásio Educacional, atuante nas áreas Cível e Administrativo. Email: elisazafalao@gmail.com.

A advogada Elisa Zafalão escreve periodicamente para o SaudeOcupacional.org, na “Coluna da Zafalão”.

Obs.: esse texto traduz a opinião pessoal da colunista, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.

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